Olho para os meus cadernos de apontamentos. Escrevo-os desde a adolescência. Primeiro diários, depois apontamentos e reflexões, depois cadernos de apoio ao jornalismo, depois uma mistura de diários, observações e desenhos.
Os [parênteses da vida] com menos cadernos correspondem aos anos em que mais me afastei da escrita, da literatura, enfim, de mim.
Gosto de rever os meus retalhos e gosto ainda mais de espiar os dos outros. Não preciso de nada elaborado. Prefiro os apontamentos comezinhos, as miudezas, como esta entrada do diário de Al Berto:
“Estive, de tarde, a tomar café na esplanada do Príncipe Real. À noite estive no Frágil” - ter, 26 Fev 91
Ou esta, do Cesare Pavese:
“As coisas gratuitas são as mais caras. Porquê? Custam o esforço de compreender que são gratuitas” - Jan, 1936
O que leio, basta-me.
Hoje, deixo-vos espiar os meus. Escrevi um ou outro ainda esta semana. Outros têm mais de 20 anos.
~
O Victor estava com um agrafo na boca. Tem sempre qualquer coisa lá. Um palito, uma pedaço de fita cola, o plástico de uma embalagem… Enquanto limpava os óculos distraiu-se e engoliu-o. Temeu que o agrafo se agarrasse a algum órgão. Foi ao médico e saiu de lá com uma tirinha de papel para realizar uma radiografia.
~
Como posso partir da minha experiência e contar algo que seja sobre cada pessoa que me lê?
~
Há mais de 5 dias que chove o mundo. Preciso de uma alface para acompanhar o salmão que vou preparar na airfryer. Tenho de ir à horta. Preciso de ir à horta. Os céus desabam, mas eu preciso. Pego no carro e saio de casa, meio às escondidas. Encontro lá dois agricultores. Marido e mulher, de meia idade, vestem uma gabardine, umas calças de plástico e umas galochas verdes. Os capuchos caem sobre o rosto e só vejo narizes. Cavam regos ao lado das couves, para as salvarem do naufrágio. No chão, um guarda-chuva aberto e abandonado, de pernas para o ar.
“Hoje é que está bom”, diz-me um deles. Os três rimos e eu sigo para o meu talhão. Por lá zanzei mais de 30 minutos. Vi as minhas malaguetas, ajeitei um ou outro tomateiro, espreitei a compostagem, colhi o meu pé de alface e regressei a casa m-o-l-h-a-d-í-s-s-i-m-a.
~
“Quem não sentiu alguma vez que perdeu uma coisa infinita”, Borges
~
No workshop, enrolava as folhas de arroz chinesas à volta dos palitinhos de cenoura, pickles de cebola e tiras de pimento vermelho, como a chef ensinou. Um colega veio dizer-me para enrolar de outra maneira.
Há sempre um homem pronto a orientar-nos e a querer cagar tudo.
~
Uma horta é muito generosa. Cada tomateiro pode produzir até 100 tomates. A minha é uma cabra.
~
Cansei de ser gentil.
~
Um abraço querido/a leitor/a ❤️
Maria Eduarda
Queremos um update sobre o Victor! Onde anda o agrafo do Victor?
♥♥♥